a queda





o alarme

O homem caiu da varanda do quarto, que era no sétimo andar do hotel. Um par de namorados que passeava ao luar encontrou o corpo. A rapariga desmaiou, o rapaz foi a correr chamar gente. O gerente do hotel chamou a polícia e, a seguir, veio falar comigo.
Eu estava no bar, a braços com o terceiro malte da noite, um Laphroaig destilado em fogo de turfa. Ele pediu desculpa por me incomodar: precisava que eu atestasse a morte.
- Isto nunca me aconteceu – disse ele.
- A mim também não - disse eu.
Pura verdade. Os meus únicos mortos eram os velhos que morriam no hospital, entre tubos e monitores, invisíveis e silenciosos. Os outros mortos, os mortos de morte violenta, homicídio ou acidente, só no cinema, como toda a gente.
Saímos do hotel para o lado do mar. Era desse lado que estava o corpo. Estava uma noite quente e sem vento.
O corpo estava caído na estrada, com o braço direito e a cabeça em posições estranhas. Havia um carro com a chapa amolgada e o pára-brisas partido e havia pedaços de vidro espalhados no chão em volta. O homem, aparentemente, caíra sobre o carro, rolando depois para o chão.
Baixei-me para o observar. O gerente e meia dúzia de mirones observavam-me a mim. Pus um ar profissional enquanto pensava em alguma coisa para fazer. Não percebia nada de medicina legal.
- Está morto? - disse o gerente.
A pergunta idiota deu-me à-vontade. Estendi a mão para o pescoço do homem e verifiquei a ausência de pulso. Não foi fácil encontrar a posição da carótida porque o pescoço do homem estava num ângulo impossível. Seco, cabelo grisalho e pele escura. Talvez 50 anos. Olhos semicerrados e boca entreaberta, que lhe davam um curioso ar suspenso. Um fio de sangue escorrera sobre a testa, a partir da raiz do cabelo, e mergulhava no olho direito. Era estranho, porque a face estava virada para cima.
- Mudaram a posição do corpo? - perguntei.
- Não - respondeu o gerente.
- Talvez quem encontrou o corpo lhe tenha mexido – disse eu.
- Não! – disse o par de namorados que dera o alerta e que também estava ali a observar. - Não mexemos em nada!
O fio de sangue na testa do cadáver continuava a intrigar-me. Afastei-lhe os cabelos com a mão. A luz do luar era frouxa e incerta mas, mesmo assim, pude ver um empastamento de sangue do tamanho de uma ameixa logo cima do temporal. Recordava o suficiente dos exames de medicina forense, e do CSI, para saber que o sangue não se infiltra nos tecidos de um cadáver: não há pressão suficiente nos vasos sanguíneos rompidos.
A polícia chegou entretanto. O inspector – em roupa civil, com um cigarro pendurado na boca e um telemóvel caro na mão, olhou para o corpo estendido, depois inclinou-se para trás, para olhar para a fachada do hotel:
- Ena! – exclamou. - G'anda tombo!

o inspector

O inspector Carvalho parecia um inspector: cabelo castanho, um metro e setenta e cinco, nó da gravata com o aspecto de ter sido feito de olhos fechados. Fato cinzento. Mas o cigarro ao canto da boca, um Davidoff, e a forma eficiente com que tomava notas no telemóvel destoavam um bocadinho dessa mediocridade geral. Estávamos sentados no átrio do hotel, ao lado de um letreiro que proibia fumar e de um enorme retrato a óleo de Wellington que, no Verão de 1808, resistira a Junot num descampado a poucos quilómetros dali.

Os homens do inspector preparavam uma sala, cedida pela gerência, para fazerem a recolha dos depoimentos. Todos os que estavam no hotel nessa noite seriam ouvidos.
O gerente, parado no meio do átrio, exibia um ar desesperado.
- Péssima publicidade para o hotel - disse o inspector.
Concordei.
- Não reparou em nada de especial no corpo?
Disse-lhe que não.
Hesitei se devia falar-lhe do fio de sangue na testa do cadáver e do hematoma temporal que não devia existir. Mas para quê? O médico legista saberia valorizar aquilo melhor do que eu. Para quê meter-me em confusões? Depois iam querer uma declaração, um relatório – tudo aborrecimentos. Eu estava no Vimeiro para descansar. Não era o meu trabalho.
- Houve uma coisa no cadáver que me pareceu estranha - disse eu.
- Sim?
Contei-lhe do hematoma.
- Portanto, pensa que alguém lhe bateu antes de o atirar da varanda? – disse o inspector.
- Não sei. Há muitas explicações para aquilo.
- Sim - disse o inspector, pensativo. - Pode ter batido com a cabeça na mesa de cabeceira, por exemplo. Talvez tenha batido com a cabeça e depois, tonto, tenha ido à varanda para apanhar ar e tenha caído.
- Pois - disse eu.

- Já viu quem é o tipo? - perguntou o inspector.
- Não.

- Uma merda. Amanhã temos aí os jornalistas todos.
- Porquê?
- Amanhã os jornais dizem-lhe.
Endireitou-se de repente no sofá, olhos fixos na recepção. Voltei-me. Uma mulher alta, elegante, de cabelo escuro apanhado na nuca, caminhava na nossa direcção. Eu já a tinha visto no hotel. Mas não sabia quem era. Trazia um vestido sem mangas, cor de ameixa, travado, e saltos altos. Um dos agentes acompanhava-a.
- Chiça, que o tipo sabia escolhê-las - disse o inspector Carvalho.
- Quem é?
- É a gaja do morto.

a mulher

O inspector e a mulher entraram para a sala de interrogatório e ficaram lá mais de uma hora. Depois a mulher saiu e um agente acompanhou-a ao elevador. Entraram a seguir o gerente, o pessoal da Recepção, as mulheres do serviço de quartos (acordadas no meio da noite e mandadas comparecer no hotel de imediato), e alguns hóspedes que tinham os quartos no mesmo andar.
A mim, pediram-me que fizesse um depoimento escrito. Fi-lo no bar, com um último uísque à frente.
O dia seguinte começou frio, sem sol. Às 11 horas ainda não havia ninguém na piscina exterior. Nem toalhas ou cinzeiros abandonados. Os toldos continuavam enrolados e atados, prontos para um novo dia. Sentei-me na esplanada, com um livro e um café à frente. Sentia-me baço e mole. Esperava que o café e o ar frio ajudassem.
O som de saltos altos a baterem no chão vazio da esplanada fez-me levantar a cabeça. Era ela. A mulher do morto. Em vez do vestido cor de ameixa, usava agora jeans e uma blusa cor de pêssego. O cabelo escuro continuava apanhado atrás. O inspector tinha razão: o tipo sabia escolhê-las.
- May I? - disse ela, apontando para a cadeira à minha frente.
- Claro – disse eu, e repeti em inglês: - Of course.
- I saw you last night, talking to the police – disse, enquanto se sentava. – You’re the doctor.
Falava um inglês limpo, sem sotaque. Não era como o meu, aprendido em manuais de medicina e congressos com gente de vinte países diferentes.
- I’m really sorry about your friend – disse eu.
Estava à espera que ela dissesse qualquer coisa vulgar, tipo: Thanks. Em vez disso, olhou para mim muito séria e afirmou:
- Someone murdered him.
A sério?
- Why do you think that?
E ela disse. Que o homem era, ou fora, jornalista. Que trabalhava por conta própria. Que se especializara em conseguir e depois vender informações classificadas, que os governos e as empresas gostariam que não fossem públicas. Que muita gente o temia, pelo que sabia e pelo que dizia.
- I see.
Que trouxera com ele para o hotel uma série de documentos sensíveis, pelos quais muita gente estaria disposta a matar. E que fora isso mesmo que acontecera naquela noite.
- Do you think they found what they want? – perguntei, quando ela acabou.
- Oh no! They didn’t. You see – disse ela, e sorriu: – I have the documents myself – e pousou em cima da mesa um pequeno objecto: uma jóia, um pequeno rectângulo de metal branco, com uns 3 centímetros de altura e uma minúscula borboleta num dos topos. A borboleta tinha, incrustrado no dorso, um diamante. Um fio de prata com fecho pendia de uma argola, junto à borboleta.
- It’s a pendrive. Four Gb of documents.
Empurrou-a na minha direcção.
- Please, take it.
Olhei-a com assombro:
- Why me?
- Maybe they’re coming for me, now. These documents must be saved. And you – you're a doctor. No one will touch you. Please.

campolide

No rés-do-chão do meu prédio, perto das Amoreiras, há uma pastelaria. Foi lá que, dois dias depois, o inspector me foi encontrar, sentado a um canto, diante de café e torradas.
- A autópsia deu-lhe razão: os ferimentos não resultaram da queda – disse-me, enquanto se sentava à minha frente e pedia um café para si. – O homem foi espancado antes de morrer. provavelmente com uma soqueira. Qualquer coisa desse género.
E depois, no mesmo tom de voz distraído:
- Sabe que a gaja dele desapareceu? Disse-nos que ficava no Ritz. Mas fui lá ontem e ninguém sabe dela. Evaporou-se. Se usou um carro, pode estar neste momento a atravessar os Pirinéus e nunca saberemos. Desde Schengen que é assim.
bateu nos bolsos do casaco à procura de cigarros, tirou um, meteu-o na boca.
- Não pode fumar aqui dentro – disse-lhe a empregada.
Ele tirou o cigarro da boca.
- Era boa, a gaja – disse, enquanto olhava sonhadoramente pela porta, para o passeio cheio de sol. – Que tal a achou? – perguntou, voltando-se para mim.
Não me dei por achado:
- Boa como o milho.
Ele soltou uma gargalhada. Depois pôs-se sério:
- Ouça, está a jogar um jogo perigoso.
Fiz-me de parvo:
- Eu?
Voltou a meter o cigarro na boca, tirou o isqueiro do bolso, a empregada tossiu. Ele guardou outra vez o cigarro.
- Doutor, deixe-se de merdas. Eu sei que falou com ela na manhã seguinte, antes de sair do hotel. E que ela lhe deu qualquer coisa. e se eu sei, mais gente sabe. Não sei se voltou a falar com ela, ou se vai falar, ou se já se encontrou com ela em Lisboa, ou vai encontrar-se. mas quem fez aquilo ao tipo não terá problemas em fazer-lhe o mesmo a si, se isso se revelar necessário. Pense nisso.
Mostrei-lhe os títulos do jornal que estava a ler: Conhecido activista internacional aparece morto em Portugal, etc.
- Dizem que foram serviços secretos que mataram o tipo. É verdade?
- Os jornais dizem o que lhes apetece – disse o inspector. – Ouça, encontrou-se outra vez com ela ou não.
- Não.
- Mas voltou a falar com ela?
- Sim.
- Que lhe disse ela?
- Não me disse que tencionava desaparecer.
Ele olhou para mim durante um pedaço, depois levantou-se:
- Obrigado pelo café – disse por cima do ombro, enquanto saía para a rua. – E tenha cuidado.

encontro no Ritz

A pen estava onde eu a pusera ao voltar do Vimeiro: numa gaveta da minha secretária. Fui buscá-la. Enquanto a segurava na palma da mão, lembro-me de pensar que não parecia coisa de homem. Uma pen feita de prata, enfeitada com uma borboleta de pedras preciosas?
Sem pensar, tirei a tampa e inseri a ficha USB no computador. Ao fim de alguns segundos, abriu-se uma janela do Windows Explorer. Continha um único ficheiro rar, intitulado e-power. Cliquei no ficheiro.
Primeiro não aconteceu nada, depois apareceu um aviso: Access denied. Frustrado, carreguei no botão de Ok. Em vez de fechar, a janela mudou de conteúdo. Agora dizia: Atempt to breakdown. Sending alert. Que porra era aquela? Tentei fechar a janela, mas não consegui. No écran, uma antena minúscula e pequenos traços animados formavam uma imitação ridícula de uma antena de satélite a emitir. O meu computador estava, contra a minha vontade, a enviar informação para alguém.
Olhei em volta. Não havia cabos e aquela merda tinha bateria. Como desligar a coisa?
Depois vi o router. Com dois passos atravessei a sala e arranquei a ficha da tomada. O router apagou-se. No écran apareceu uma mensagem patética e silenciosa: Trying to reconnect. Só me faltava que aquela porcaria me tivesse metido um vírus no computador. Tentei desligá-lo mas o sistema não respondia. Exasperado, desisti: tarde ou cedo a bateria ficaria exausta, e o assunto resolver-se-ia por si só.
Eram 6 da tarde. Ela tinha-me dito às 9 no bar do Ritz. Telefonei à minha filha, que não via há 3 semanas, fui às compras e encomendei uma pizza para jantar. Depois tomei banho, vesti-me, comi, engoli um malte, e, às 9 horas, estava no bar do Ritz, sentado diante de um uísque.
Mas ela não apareceu.
Do Ritz a minha casa são umas centenas de metros. Voltei a pé. Chovera. Havia arco-íris feitos de óleo e água aqui e ali, em volta dos candeeiros públicos e das luzes da entrada dos prédios. Os néons das Amoreiras brilhavam, lavados, azuis, verdes, rosas, e eu sentia-me dentro de um film noir: uma bela espia, um assassínio, polícias grosseiros, passos misteriosos na noite. Os passos eram uma invenção minha, para dar ambiente. Também li o meu Hammett.
Quando virei na direcção de Campolide, depois de subir a Joaquim António de Aguiar, um casalinho atravessou a rua à minha frente, vindo das Amoreiras. Mais atrás, dois homens caminhavam na mesma direcção.
Não é fácil pensar com 4 uísques em cima. Esforcei-me. Por que diabo não aparecera ela ao encontro que ela própria pedira?
- Can't go, sorry – dissera ao telefone, depois de me deixar secar durante duas horas. - I'll call you tomorrow.
Porquê?
Depois pensei: os tipos do hotel, claro. Não tinham conseguido o que tinham ido buscar. E agora estavam atrás dela. Mas, pensei a seguir (a caminhada e o vento frio iam-me secando os vapores do uísque), quem tinha agora aquilo que eles queriam era eu. O que significava que, depois dela, era atrás de mim que eles viriam. Belo.
O inspector tinha-me dito para ter cuidado. Antes de abrir a porta do prédio, olhei em volta. Os dois homens e o casalinho de há pouco afastavam-se na direcção da Artilharia 1.
- Bon soir.
Não tive tempo de voltar a cabeça para ver quem era.

2 rapazes maus

A seguir estou num carro, a descer uma falésia. Por vezes há alguém no carro comigo, outras vezes estou sozinho. O sol bate-me na cara, depois roda, foge. Sinto uma dor insuportável na nuca. Acordo. Há um tipo de pé na minha frente. Eu estou de joelhos e alguém me prende os braços atrás das costas. Dói-me a cabeça. Pulsares e relâmpagos. Dói-me o estômago. Facas espetadas até ao cabo no plexo solar. Penso em lacerações da mucosa e em todas as porcarias que se aprendem nos livros de cirurgia, e que só servem para nos sentirmos pior do que estamos.
- Onde está? - disse o tipo de pé à minha frente, com sotaque. - Diz, onde está?
Pergunto:
- O quê?
- A pendrive.
- Não sei.
- Menteur – disse o outro atrás de mim.
Franceses? Sinto-me baralhado.
- Estás a mentir – disse o homem de pé.
- Parle, couchon – disse o outro.
- Diz onde está – disse o homem de pé.
- Está bem – disse eu. Tinha um plano.
O outro homem largou-me os braços. Levantei-me a custo. O chão oscilante debaixo de mim. Dei dois passos na direcção da porta.
- Arretez! - gritou o homem.
Comecei a correr. A porta à minha frente a oscilar.
- Arretez!
Um estrondo, um murro a atingir-me a perna. Tropecei e o chão subiu ao encontro da minha cara. Lembro-me de pensar, enquanto ele subia:
Que merda de filme.
Depois o chão atingiu-me em cheio e, durante um bocado, deixei-me ficar atordoado, a tentar coordenar ideias. Atrás de mim havia barulho de gavetas a serem abertas, coisas a caírem no chão. Depois passos, uma porta a fechar-se. Silêncio. A dor dentro da minha cabeça. Devagarinho, tentei levantar-me, apoiando-me nos braços, mas os braços não me obedeceram. Nada.
Esperei. Lentamente, o corpo começou a dor-me. Primeiro foi a perna direita, como se tivessem tentado arrancar-ma. O que podia ser verdade. Depois foi o peito. Ao fim de uma eternidade, consegui voltar-me e ficar a olhar para o tecto. Senti o volume do telefone no bolso das calças. Com grande perícia, consegui meter a mão no bolso, agarrar o aparelho e puxá-lo para fora. Levei o telefone ao ouvido ao mesmo tempo que carregava no botão verde. Não sei bem qual era a minha intenção. Talvez não tivesse intenção. O cérebro doía-me, doía-me tudo.
A voz que atendeu era familiar, perfeita, pensei novamente.
- Yes?
- It's me – disse eu, estupidamente. Mas ela percebeu.
- Hi! - disse. - I'm really sorry about tonigh.
- No problem – disse eu, e estava a ser sincero: naquele momento, o menor dos meus problemas era ela ter faltado ao encontro dessa noite.
- I had to leave Lisbon.
A perna doía-me como o diabo. Mas ainda consegui perguntar:
- And the pendrive?
- Don't worry. I have another one.
Pausa.
- The one I gave you was just a decoy. You've been wonderful. Thank you. Bye.
Piiiiiiii... (som de telefone desligado)
Foda-se.
Vozes e pancadas na porta. Outra vez não, pensei.
- Polícia!
Fuck you.
- Abra!
Yeah!
O som inconfundível de um ombro contra a porta. (Inconfundível porquê? Mas é.) Passos. Mãos agarram-me, dou um grito, Está ferido! Chamem uma ambulância!, um homem metido dentro de um fato cinzento pára ao lado da minha cara, Mas que porra.
O homem dobrou o joelho e aproximou a cara dele da minha:
- Eu disse-lhe que era um jogo perigoso.
- 'Tá bem – disse eu.

fim

Dois dias depois, no hospital. Duas costelas partidas, hematomas na região occipital, um zumbido persistente nos ouvidos. Nenhuma retina descolada nem orgãos internos lacerados.
Toquei ao de leve na nuca e fiz uma careta de dor.
- Dói-lhe muito? - disse o inspector, sentado aos pés da cama.
- Não – disse eu, – mas obrigado pela sua preocupação. Quem eram eles?
- Eu disse-lhe para ter cuidado.
- Pois disse. Quem eram eles?
O inspector hesitou.
- Diga lá. Deve-me isso.
- Eu não lhe devo nada. Eu avisei-o. São franceses.
- Seus amigos?
- Eu não lhes chamaria propriamente amigos. Digamos: agentes de uma potência amiga.
- Foi você quem lhes disse que eu tinha a porcaria da pen?
- Não foi preciso. Os ficheiros tinham um sistema de segurança integrado. Ao serem abertos, o sistema activa-se. O computador emite um sinal.
- Sim, eu sei.
- É um sistema engenhoso. Souberam que você tinha os ficheiros no próprio instante em que tentou abri-los.
- E o sistema também lhes disse onde eu moro?
- O IP. Foi fácil para eles localizá-lo.
- E você? Como é que você apareceu em minha casa? Disseram-lhe eles?
- Recebemos um telefonema.
- De quem?
- Dela.
- Está a gozar!
- Não.
Fiquei calado um pedaço. Entupido. Que querida! Primeiro lança-me ao fogo, depois chama os bombeiros.
- Fez figura de parvo, tem noção disso? Tem sorte se não for acusado de cumplicidade.
Não respondi. Mas havia mais uma pergunta que eu queria fazer:
- Quem é ela?
- Não sabemos. Pensamos que pode estar a trabalhar para os chineses.
- Desde quando é que os chineses estão interessados na liberdade de expressão?
Ele olhou-me com piedade:
- Você não percebe mesmo nada, pois não? Pensa que o tipo era um idealista?
- Não era?
- O Jimmy Aspen era um vulgar negociante de um produto muito velho e muito valioso: informação. Comprava onde podia e vendia a quem pagava. A divulgação de segredos ou pretensos segredos diplomáticos, políticos, militares, caíam bem nos media mas não passavam de cobertura.
Deixou aquilo assentar bem no meu espírito antes de continuar:
- Lembra-se do caso dos engenheiros franceses que roubaram os planos de um novo motor eléctrico? Veio nos jornais há algum tempo.
- Sim. Estavam na pen?
Ele encolheu os ombros:
- Talvez.
- E os seus compinchas mataram o tipo por causa dos planos de um motor?
- Você sabe como os franceses são susceptíveis – disse o inspector.
- Mesmo assim.
- A ideia não era matá-lo. E não acho que eles o tenham feito. Suponho que o pobre tipo tenha ido à varanda depois deles saírem, talvez para apanhar ar. E caiu.
- Nem as séries de domingo se atrevem a usar essa – disse eu.
Ele ignorou o meu comentário.
- Claro que existe outra hipótese: que tenha sido ela a empurrá-lo.
- Porquê?
- Porque não? Já tinha o que queria. Aliás, se conseguiu duplicar a pen, conforme você nos disse, já devia tê-la há bastante tempo. Não se copia um sistema daqueles em cinco minutos.
Naquele momento entrou no quarto uma enfermeira. Mediu-me o pulso e a temperatura, anotou tudo na prancheta pendurada na cama e voltou a sair.
- Ao menos comeu-a? – disse o inspector.
- Não – disse eu.
- Que porra – disse o inspector. – Ao menos podia tê-la comido.


Janeiro 2011

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